O comprometimento da renda das famílias brasileiras com dívidas voltou a crescer e atingiu em fevereiro de 2025 o maior patamar desde julho de 2023, segundo dados do Banco Central. O percentual chegou a 27,2%, indicando uma reversão do cenário de alívio conquistado com o programa Desenrola, lançado em 2023 pelo governo federal para renegociar débitos e reduzir a inadimplência.
Especialistas apontam que o aumento do endividamento está diretamente ligado à ampliação do crédito pessoal no segundo semestre de 2024 e à elevação da taxa Selic, que saltou de 10,5% para 14,75% ao ano em 12 meses. A combinação de juros altos e inflação pressionou ainda mais os lares brasileiros, principalmente os de menor renda.
Juros elevados e inflação apertam o orçamento
A alta nos juros é uma medida do Banco Central para conter a inflação, que acumulou 5,53% em 12 meses até abril, acima da meta de 3%. Esse cenário afeta sobretudo o consumo básico — como alimentos, transporte e moradia — obrigando famílias a recorrer a linhas de crédito emergenciais, como cheque especial e rotativo do cartão de crédito, cujas taxas ultrapassam 100% ao ano.
Com a renda comprometida e os preços elevados, muitos brasileiros têm recorrido a novos empréstimos para quitar dívidas antigas, o que acentua o ciclo de endividamento. É o caso de Maria Regina Cordeiro, aposentada de 72 anos, que vive com a filha em São João de Meriti (RJ). Com renda fixa próxima de R$ 3 mil, ela precisa equilibrar contas mensais, alimentação, gás e empréstimos pessoais, destinando cerca de R$ 2.800 por mês para essas despesas.
— Está tudo muito caro. Tento me organizar, mas quase toda minha renda vai para pagar dívida — relata.
Realidade se repete em diversos lares
Situações como a de Maria Regina se multiplicam em diferentes regiões. Alexandra Gonçalves, copeira hospitalar na Zona Norte do Rio, viu seu orçamento apertar após contratar um empréstimo consignado de R$ 14 mil em outubro de 2024 para cuidar da neta, que tem necessidades especiais. Hoje, mais da metade da renda familiar de R$ 5.700 é destinada ao pagamento de dívidas e despesas básicas.
— Tem mês que a gente aperta daqui e cobre dali. É difícil fechar as contas — diz Alexandra.
Desenrola teve impacto, mas efeitos foram temporários
O programa Desenrola, que terminou em maio de 2024, contribuiu para a redução temporária do comprometimento da renda, que chegou a 25,8% naquele mês. No entanto, o avanço dos juros e o crescimento da tomada de crédito pessoal fizeram esse alívio desaparecer em poucos meses. De acordo com o economista Caio Napoleão, cerca de 70% do aumento atual do comprometimento da renda se deve à amortização de novas dívidas, especialmente cartão de crédito, crédito pessoal e financiamento de veículos.
Apesar disso, a renda média da população cresceu 9,5% entre maio de 2024 e fevereiro de 2025, mas não foi suficiente para conter a deterioração financeira das famílias.
Nova aposta: Crédito do Trabalhador
Na tentativa de reduzir o peso das dívidas, o governo lançou recentemente o programa Crédito do Trabalhador, que permite a contratação de empréstimos consignados por todos os empregados com carteira assinada — cerca de 40 milhões de brasileiros. Com taxas mais baixas e descontos direto em folha, a nova linha de crédito já movimentou R$ 10,1 bilhões em pouco mais de um mês, com destaque para R$ 2 bilhões usados na migração de dívidas mais caras.
Para a economista Isabela Tavares, da Tendências Consultoria, a medida representa uma mudança estrutural no sistema de crédito:
— Diferente do Desenrola, que teve impacto emergencial, o novo consignado oferece acesso a crédito mais barato e com menor risco de inadimplência — avalia.
Educação e proteção financeira são prioridade
Além de ampliar o acesso ao crédito, o governo estuda medidas para fortalecer a educação financeira e proteger consumidores de serviços bancários. A ideia é seguir o exemplo de países como EUA e Reino Unido, onde os bancos são obrigados a avaliar o perfil financeiro dos clientes antes da concessão de crédito.
Segundo Marcos Pinto, secretário de Reformas Econômicas da Fazenda, o Brasil precisa avançar na promoção da cidadania financeira:
— Já promovemos a inclusão bancária, agora é hora de garantir informação, educação e proteção para os consumidores — afirma.
O Banco Central, por sua vez, tem reforçado sua atuação na supervisão de condutas do sistema bancário e regulado práticas que visam proteger o consumidor, como o limite de juros no rotativo do cartão de crédito e o teto de 8% ao mês no cheque especial.